No próximo dia 19 de novembro de 2021, entre as 03h e 09h (horário de Brasília) ocorrerá um eclipse lunar. A propósito disto, seguem aqui algumas brevíssimas considerações sobre a perspectiva cabalista em Judá Abravanel (Leão Hebreu) sobre esse tema. São notas ainda provisórias, em progressão intelectiva tal como o eclipse, a serem concluídas até que aconteça o evento aguardado no orbe celeste.
Seguindo o princípio cabalista de que a realidade deve ser interpretada embaixo como em cima, no entendimento de Judá Abravanel, o Sol se assemelha ao intelecto divino; a Lua, à alma do mundo; a Terra, ao corpo. No Terceiro Diálogo de sua opus magnum, Leão Hebreu registrou uma definição dessa dinâmica:
“Filon – Assim como a alma é o meio entre intelecto e o corpo, sendo feita e composta da estabilidade e unidade intelectual e da diversidade corpórea, assim a Lua é meio entre o Sol (imagem do intelecto) e a Terra física, sendo feita e composta da única e estável luz solar e da diversa e variável tenebrosidade terrestre.” (ABRAVANEL, 2001, p. 230)
A partir disso, a correlação com a vida cotidiana se estabelece, de modo que o intérprete cabalista deve considerar como a alma humana movimenta-se em oposição ou copulação ao Intelecto e ao corpo. Transitando entre um e outro, a alma pode se tornar iluminada ou obscurecida, ao modelo do movimento da Lua, entre a Terra e o Sol. Mais próxima do Sol, mais iluminada; mais próxima da Terra, mais tenebrosidade corpórea.
Observando o céu, esses movimentos interiores se manifestam nas formas em que vemos o movimento da Lua no orbe celeste: em oposição ao sol, lua cheia; em copulação com o sol, lua nova; quarto crescente, quando caminha da lua nova à lua cheia; quarto minguante, quando caminha após a lua cheia em direção à lua nova.
Também isto tem um significado cabalístico: a lua cheia representa o momento em que a alma está plenamente voltada às coisas corpóreas, assim como a terra fica iluminada pela lua, pois “quando a alma leva para a corporeidade, na parte inferior, toda a luz que tem do intelecto, encontra-se em oposição inamistosa ao intelecto e afasta-se dele completamente.” (ABRAVANEL, 2001, p. 232). A alma daquele que se volta (ou seja, lança luz do conhecimento) para as coisas materiais e corpóreas, perde a razão e a luz intelectiva, que ficam obscurecidas em seu oposto (ABRAVANEL, 2001, p. 232).
O contrário também deve ser entendido sob essa ótica. Assim como Lua nova escurece-se para a Terra voltada em copulação ao Sol, entende-se que a alma retira a sua luz do mundo inferior e se volta completamente para o superior divino. Essa divina copulação representa a felicidade suprema e atenuação das coisas corpóreas.
Entendida essa dinâmica tripartite: Terra, Lua, Sol, e sua relação simbólica com o corpo, alma e intelecto, respectivamente, Sofia solicita a Filon: “Quereria saber se achas alguma semelhança entre o eclipse da Lua e as coisas da alma.” (ABRAVANEL, 2001, p. 235). E seu enamorado responde belissimamente:
“Filon – Também nisso o Pintor do mundo se não descuidou. O eclipse da Lua deve-se à interposição da Terra entre ela e o Sol que lhe dá luz: em virtude da sombra dela, a Lua fica inteiramente escura, quer na parte inferior, quer na superior; e diz-se “eclipsada” porque perde completamente a luz numa e noutra metade. O mesmo acontece à alma: quando entre ela e o intelecto se interpõe o que é corpóreo e terrestre, perde toda a luz que recebia do intelecto não só na parte superior, mas também na inferior, activa e corpórea.” (ABRAVANEL 2001, p. 235).
Assim, nesta definição de eclipse, tem-se o entendimento cabalístico do fenômeno celeste. Para nosso autor, esse é o período em que a disposição dos elementos promove momentos de grande obscuridade da alma, que fica alheia à luz intelectiva, plenamente “abjecta, […] igualada à alma dos animais brutos” (ABRAVANEL 2001, p. 235), assumindo a natureza destes; um conceito também encontrado em Pitágoras. Assim como os eclipses podem ser totais ou parciais, igualmente, a bestialidade da alma se manifesta em gradação, conforme o nível de iluminação recebida ou suplantada. “Como quer que seja, porém, a bestialidade – total ou parcial – é máxima destruição e sumo defeito da alma; e é por isso que Davi diz a Deus, na sua prece: ‘Livra da destruição e de ser presa dos cães a minha alma, meu único bem!’ [Sl 22.20]” (ABRAVANEL, 2001, p. 235).
Por fim, em leitura cabalista, o que se deve considerar com cuidado a respeito do eclipse que está para se manifestar? Bem, do mesmo modo como a Terra se posiciona entre o Sol e a Lua, “quando a sensualidade terrena se interpõe entre ela [alma] e o intelecto, fica eclipsada ao modo da Lua, torna-se escura e desprovida de luz intelectual, como acabo de te dizer” (ABRAVANEL, 2001, p. 235), explica Filon a Sofia. Portanto, eclipse é tempo cósmico de estímulo à bestialidade das ações humanas, de interposição dos bons propósitos, e assim sendo, é tempo em que se exige mais cuidado e moderação, numa prudente desconfiança de si.
SDG
REFERÊNCIAS
ABRAVANEL, Judá (Leão Hebreu). Diálogos de Amor. Tradução de Giacinto Manuppella. Coleção Pensamento Português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001.
GOMES, Gilmar Araújo. Judaísmo e Literatura: A Teoria do Amor de Judá Abravanel (Leão Hebreu) nos Diálogos de Amor. São Cristóvão/SE: Universidade Federal de Sergipe (UFS), 2017. Dissertação para o Mestrado em Ciências da Religião.
Texto atualizado em 18/11/2021, às 10h33min.