A investigação específica da melancolia como tema de estudo nos Diálogos de Amor nos indicam que existem seis ocorrências no texto de Leão Hebreu, as quais abordaremos brevemente. Elas surgem no correr dos três livros que formam a opus magnum de Judá Abravanel, numa progressão de entendimento, como é próprio do texto de Abravanel, conduzindo o leitor ao ensino numa crescente expositiva. Primeiro, a definição dos conceitos, em termos mais universais (ABRAVANEL, 2001, p. 64). Segundo, leitura neoplatônica  (ABRAVANEL, 2001, p.142); terceiro, uma leitura alegórica e mitológica (ABRAVANEL, 2001, p. 166, 167); quarto, uma leitura astrológica e natural (ABRAVANEL, 2001, p. 178); por fim, uma leitura que chamo aqui de amorável (ABRAVANEL, 2001, p. 240) porque nela Filon busca convencer Sofia dos efeitos que lhe causam o amor não correspondido. 

No primeiro livro, dedicado a definir a relação entre amor e desejo, a tônica está em saber se o amor desejado permanece depois de conseguido.  Primeiro, Filon esclarece quais sejam as três espécies de bom: o proveitoso, o deleitável e o honesto, qualidades que também estão presentes nas três espécies de amor (ABRAVANEL, 2001, p. 64, 65). Cansada de rodeios, Sofia pede que Filon seja mais direto, e ele diz:

“O útil, como sejam as riquezas, bens particulares de aquisição, nunca são amadas e desejadas conjuntamente. Antes, quando não se têm, desejam-se mas não se amam, por serem doutros; quando, porém, são adquiridas, cessa o desejo delas e então amam-se como coisas próprias, gozam-se com união e propriedade. (…) aqueles homens, cuja vontade se orienta para o amor útil, tem diversos e infinitos desejos, e quando cessa um pela aquisição, outro sobrevém, maior e mais sôfrego, de tal modo que nunca saciam a sua vontade de semelhantes desejos, pois quanto mais possuem, mais desejam (…).” (ABRAVANEL, 2001, p. 71).

Argumentando para conquistar Sofia, Filon defende que há coisas que são amadas antes de serem possuídas ao mesmo tempo em que também são desejadas. E como, ao serem possuídas, falta-lhe o desejo, é de se concluir “que o amor e o desejo podem estar juntos” (ABRAVANEL, 2001, p. 65).

Quanto ao amor deleitável, Filon entende que ele é sem medida quando se lhe acrescenta o desejo. Reforça o amante à amada:

“Tu hás-de saber que na pura apetência do deleitável existe um prazer da imaginação, conquanto ainda se não goze de facto; o que se não dá com o anseio do útil, cuja falta, pelo contrário, causa tristeza àquele que deseja. É por isso que verás geralmente homens apetecedores do deleitável serem alegres e prazenteiros, e os ávidos do útil serem descontentes e melancólicos.” (ABRAVANEL, 2001, p. 76).

Eis aqui a primeira ocorrência da melancolia no texto de Leão Hebreu. E é muito significativa, pois nos indica que a melancolia está atrelada ao exercício do bem útil. Enquanto o deleitável se contenta com a imaginação até consumar o amor, o útil só se deleita na posse real. Aquele que se apetece pelo deleitável prova, também, o prazer da imaginação, de modo que não se torna infeliz por ainda não consumar, de fato, o amor. Melancolia e descontentamento são frutos dos que estão ávidos desejando o amor útil.

Perturbado pelo amor não correspondido por Sofia, Filon argumenta o quanto é difícil seguir a razão visto que o amor verdadeiro violenta a razão e a pessoa amante, tornando-a “inimigo do prazer e da companhia, amigo da solidão, melancólico, cheio de paixões, rodeado de sofrimentos, atormentado de aflição, martirizado de desejo, (…)” (ABRAVANEL, 2001, p. 107).

O próximo ensino sobre melancolia em Abravanel dá-se no entendimento das três partes constituintes do corpo humano, uma por sobre a outra, como igualmente se estrutura o mundo. Nesta fase dos Diálogos de Amor, Leão Hebreu deseja apresentar o homem zodiacal, ou seja, a observação do homem como simulacro de todo o universo. Segundo ele, a melancolia está situada na primeira parte do corpo, parte inferior, e corresponde às características dos membros da geração e da corrupção. São as qualificações mais básicas do ser humano, encontradas da medida da cintura do corpo humano para baixo, “corresponde ao mundo inferior na geração do Universo” (ABRAVANEL, 2001, p. 142). Ali se encontra o humor melancólico, frio e seco, correspondente às qualidades da terra.

A próxima ocorrência se dá no ensino mitológico de interpretação alegórica. Ela acontece na correspondência que existe entre a Terra e o planeta Saturno. Recorrendo aos antigos ensinos como encontrados na Teogonia de Hesíodo, depois de abordar a origem dos deuses, e as opiniões de Platão, Aristóteles e o ensino deste relacionado com Plotino, Abravanel propõe um questionamento por boca de Sofia. Ela quer saber quem nasceu do Céu, ou de Urano, a depender da tradição. Saturno é a resposta. E explica: Urano se enamorou de Vesta, noutras palavras, o Céu copulou a Terra. Dela nasceu, entre tantos, Saturno. Mais voltado para a Terra, Saturno é afeito à agricultura e com as mesmas características de sua mãe, frio e seco. “Saturno foi de natureza tardonha e melancólica, à maneira da Terra; e alegoricamente a Terra, como te disse, é a mulher do Céu na geração de todas as coisas do mundo inferior.” (ABRAVANEL 2001, p. 166).

Por esta razão, os melancólicos são também associados aos saturninos, pois que as características que esse planeta apresenta, advindas da Terra, sua mãe, refletem-se nos homens. Diz Filon:

[E] torna os homens nos quais predomina melancólicos, tristes, graves e morosos, da cor da terra, inclinados à agricultura, à actividade fabril e a ofícios terrenos, pois é o planeta que governa também todas estas coisas da terra. Pintam-no velho, tristonho, feio no parecer, cogitabundo, mal vestido, com uma foice na mão, porque assim torna os homens que domina, e a foice é instrumento da agricultura, à qual os torna inclinados.” (ABRAVANEL, 2001, p. 167)

Para os romanos, Saturno, para o gregos, Cronos. Ambos, e o mesmo, propensos a estabelecer o tempo certo, definido, pondo fim às épocas com seu tempo determinado; cortante, frio e seco, sem empatia, apenas desejoso de exercer o amor de si nos propósitos em que se determina. É o efeito da melancolia no amor.

Segundo Abravanel, esse amor sempre surge em dupla, em duas expressões, honesto e deleitável, “porque o verdadeiro amor deve ser gêmeo e recíproco nos dois amantes. E juntos geram as Graças, já que nunca existe amor sem graça em ambas as partes.” (ABRAVANEL, 2001, p. 178). Por isto ser lembrado em dupla, como os pombos, ou as folhas de mirto, que sempre surgem gêmeas e de cheiro suave e verdes como amor que floresce. Mas também, destaque-se, o fruto do mirto é negro “a denotar que o amor dá fruto melancólico e angustioso.” (ABRAVANEL, 2001, p. 178).

Florescimento e morte, verdura e negritude, suavidade e amargor são características do amor que se percebem no tempo decorrido após a união dos amantes. Desse modo, ilustra Leão Hebreu, é justamente pelo tempo que se inicia a geração e corrupção do mundo inferior. Por desejar Vênus, Saturno cortou com sua foice os testículos de Urano, semeando o mundo inferior, chamado mar do mundo. Por serem forças correspondentes, Vênus de gerar e Saturno de morrer, ambos estão nas pontas da linha do tempo, ligados pelo desejo do amor útil.

A última abordagem do tema da melancolia nos Diálogos  de Amor dá-se quando Filon se queixa de Sofia pela falta de correspondência em seu amor. Tomado de desejo, Filon inclina-se para o amor intelectual, voltando-se para dentro de si mesmo. Assim como o corpo cobra da alma o amor do intelecto, e como a Lua tem amor ao Sol, Filon esteve em profunda contemplação intelectiva da beleza da amada, absorto em si (ABRAVANEL, 2001, p. 217), e do modo “como a alma com suas mutações transfere a luz do intelecto para o mundo corpóreo pelo amor que tem a ambos, também a Lua transfere a luz do Sol para o mundo terreno pelo amor que tem aos dois.” (ABRAVANEL, 2001, p. 240). Em estado melancólico, a alma de Filon transita entre o amor corpóreo de Sofia e a suma Beleza do intelecto.

Como em todo texto que produz, Leão Hebreu amplia o ensino proposto, numa crescente de sentido e significado. De modo que o tema da melancolia, iniciado em definições universais, afunila-se para o relacionamento amorável que permita ao amante e à amada consumarem o desejo de amor. Como isto ainda não aconteceu, surgem as queixas de ambas as partes. Dele por ser largado em desejo; dela por não aceitar que o amante encontre outra forma de contemplar a beleza desejada, por meio do amor intelectual, uma preciosa chave de sentido em Abravanel.  Por isto, queixando-se ela por ciúmes, visto que o amante passou a evitar seu desejo da amada, um curioso diálogo se estabelece:

Sofia – Bem agreste me pintas, ó Filon!
Filon – Antes sumamente ambiciosa, pois me roubas a mim, a ti e a todo o resto.
Sofia – Ao menos sou para ti útil e salutífera, já que te livro de muitos pensamentos molestos e melancólicos.
Filon – Mais ainda: venenosa!

Desse modo, na obra de Abravanel a melancolia é fruto amargoso do amor faltante. Experimenta a melancolia todo aquele que prioriza unicamente o amor útil. A falta do amor promove secura e frieza, postura saturnina, angústia cronologicamente medida. Não lhe basta desejar o amor enquanto nutre expectativa, não há deleite nisto. É preciso consumar o amor. Quando o tempo dele acabar, que venha o próximo. Se o amor lhe falta, o desejo lhe provoca melancolia.

Têm-se aqui linhas provisórias desse tema tão instigante. Cabem maiores ponderações no futuro. Por hora, esperemos a melancolia evadir-se.

ex uno omnia

 

 

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